Ep.01 | Misericórdia e lealdade em meio a tragédia (1.1-22)
Hoje iniciaremos uma série de mensagens no livro de Rute. Na verdade, começaremos a assistir [ouvir] uma novela: A Novela da Redenção no Livro de Rute. Uma história em quatro episódios. Talvez você compreenda novela em termos de televisão, apenas. No entanto, novela é um gênero literário muito utilizado por escritores, inclusive os escritores bíblicos.
Novela é um gênero que contém uma breve história, com alguns episódios até atingir um desfecho, cujo objetivo é nos trazer uma lição. Veremos que nessa novela há a seguinte sequência: um problema (tragédia familiar), mais problemas, princípio de resolução do problema e desfecho com a resolução de todos os problemas.
Aqueles que amam ler ou assistir romances irão amar o livro de Rute, pois aborda a relação romântica entre um homem e uma mulher. Há também o suspense e uma situação em que parece não haver solução. Também é uma história marcada por heroísmo. Mas, o principal objetivo dessa história é mostrar como a novela de Rute está relacionada com a história da nossa redenção.
Vejamos, então, o que nos reserva o primeiro episódio dessa novela.
Um período sombrio (vv. 1-5).
O verso um nos diz que os eventos a seguir ocorrem no período dos juízes, aqueles que julgaram Israel no período entre a morte de Josué e a coroação de Saul como rei. Certamente você deve se lembrar de como era essa época. O último versículo de Juízes diz:
“Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Jz 21.25; cf. 17.6).
O livro de Juízes nos mostra o povo na terra de Canaã se prostituindo ao seguir outros deuses. Deus havia ordenado ao povo que, ao entrar na terra, expulsassem todos os moradores de lá para que não caíssem na idolatria deles. Mas o povo desobedeceu. Dessa forma, Deus enviava inimigos à Israel, o povo clamava pelo Senhor e Deus suscitava juízes para livrar o povo. Este era o ciclo desse período sombrio.
Assim, o livro de Rute tem como contexto histórico a época dos juízes, em que o povo de Deus O desprezava seguindo outros deuses, quebrava Suas leis e rejeitavam ao Senhor. Porém, embora o livro retrate a época dos juízes de Israel, a obra foi escrita depois dessa época, provavelmente durante o reinado de Davi (cf. 4.13ss). O escritor do livro é incerto, embora a Bíblia judaica apresente o profeta Samuel como provável autor.
Fome e Dor
O verso um, ainda, nos diz que houve fome na terra. Trata-se da terra de Judá e não em todo o planeta Terra, mesmo porque o refúgio daquela família seria a terra de Moabe, onde teria mantimento. Não temos aqui - especificado – se essa fome era um castigo de Deus ao povo de Judá. Mas olhemos para o que diz Levítico 26.3-4:
“3 Se andardes nos meus estatutos, guardardes os meus mandamentos e os cumprirdes, 4 então, eu vos darei as vossas chuvas a seu tempo; e a terra dará a sua messe, e a árvore do campo, o seu fruto”.
Ao que parece, tal fome é a mão pesada de Deus sobre um povo desobediente. Escassez de chuvas – nós nordestinos sabemos bem disso – resulta em grande tragédia na terra. Foi o que aconteceu naqueles dias.
Em razão da fome, Elimeleque, sua esposa Noemi e seus filhos Malom e Quiliom (v.2) resolveram sair de Belém de Judá (9 km de Jerusalém) para ir até Moabe, uma terra pagã que oprimiu Israel por 18 anos durante o período dos juízes (cf. 3.12-30). Naquela circunstância Deus usou Eúde para matar Eglon (rei gordo de Moabe) com um punhal.
Para piorar a situação, além de ser uma época de apostasia e desprezo às leis de Deus, da fome que assola a terra dos hebreus e a viajem a outra terra, o marido de Noemi morre (v.3). Aqui está Noemi, viúva e com dois filhos em terra estrangeira. Poderia piorar?
A segunda geração da família (Malon e Quilion) se casa com mulheres estrangeiras, moabitas: Orfa e Rute (v.4), o que era proibido na lei de Deus (Dt 7.1-4). Após dez anos os filhos de Noemi morrem (v.5). O texto não explicita, mas fica-nos uma pergunta no ar: seria tudo isso, ainda, a mão do Senhor pesando sobre aquela família por misturar-se com povo estrangeiro? Não está claro. Porém, em meio a toda essa tragédia, percebemos o agir de Deus em prol do Seu povo e a realização do Seu plano redentivo.
No verso 5, final da introdução do livro, temos a situação em que Noemi se encontra: desamparada dos filhos e do marido. É assim que se inicia esta novela, num período sombrio, em meio a fome e a dor do luto. O que virá diante dessa tragédia?
Lealdade a caminho de Belém (vv. 6-18).
Noemi e suas noras resolvem voltar para Belém (“casa de pão”) de Judá, pois Deus se lembrou do seu povo, dando-lhe pão (v.6). Aos poucos o Autor da Novela vai mudando o ruma da trama. Nesta cena notamos as tentativas de Noemi de despedir suas noras Orfa e Rute, incentivando-as a voltarem para Moabe.
Na primeira tentativa (vv.7-10) Noemi pede que elas voltem e ora para que o Senhor seja misericordioso com elas, como elas foram com sua sogra. A ideia de Noemi era: “Vão e sejam felizes, vocês já fizeram muito por mim”. Mas elas se recusam a voltar e querem ir com Noemi.
Na segunda tentativa (vv.11-14) Noemi argumenta que ela não tem nada para oferecer à suas noras. O costume do povo hebreu, tendo como base Deuteronômio 25.5-10, era que quando o marido morresse seu irmão ou parente próximo se casaria com a viúva para continuar o nome do falecido. Quando Noemi diz que não tem filhos para se casar com suas noras, está se referindo a esse costume. Para Noemi, o nome de sua família “já era”. Suas noras poderiam casar-se novamente em Moabe, mas ela não tinha nada a lhes oferecer. O que restava para alguém na condição de Noemi era a mendicância.
A única coisa que Noemi tem, naquele momento é amargura (v.13), mas ela não queria compartilhar isso com suas noras. Orfa a deixou, mas “Rute se apegou a ela” (v.14). Rute se apegou a Noemi mesmo quando esta não tinha nada a lhe oferecer.
Na terceira tentativa (vv.15-18) Noemi pede a Rute que faça o mesmo que Orfa, ou seja, que volte para o seu povo e para os seus deuses (v.15). Aqui notamos a conversão sincera de Rute. Ela rejeitou o deus moabita (Quemos) e se voltou para o Deus de Noemi, Javé (v.17).
Lembremos que a conversão no AT é relatada de uma maneira diferente do NT, embora seja da mesma forma, pela fé. Primeiramente, Rute declarou que faria parte do povo de Israel, o povo da Aliança (v.16). Isso caracterizava a sua crença igual a dos hebreus. Em segundo lugar, Rute demonstra sua fidelidade ao Senhor ao querer estar na terra da promessa (v.17), assim como José, no Egito, quando pediu para que seus ossos fossem sepultados em Canaã (Gn 50.25; Êx 13.19). Ela demonstrou ter a mesma fé que sua sogra. Em terceiro lugar, ela demonstrou sua fé ao escolher adorar Javé, o Deus de Noemi ao invés de Quemos (v.17). Temos aqui, portanto, um vislumbre do plano de Deus explicitado no NT com relação à salvação dos gentios.
É maravilhoso notar que Rute se apega a Noemi mesmo diante das expectativas ruins que ela tem acerca do futuro. Mesmo não tendo mais esperanças para o futuro, Rute decide ficar com sua sogra que nada lhe tinha a oferecer. Rute demonstra sua lealdade e misericórdia para alguém que estava no fundo do poço.
Notamos também uma mulher de fé mesmo numa situação adversa. Rute poderia ter pensado: “Voltarei para minha casa, minha terra, meus parentes e amigos. Vou fazer o que na terra dos israelitas, com uma mulher que Deus abandonou?” Ao contrário disso, Rute disse a Noemi: “Não deixarei você. Seu Deus é meu também”. Fé, lealdade e misericórdia diante de uma grande crise.
Noemi demora para entender as coisas da perspectiva divina. Os versos 19-22 mostram que, na chegada a Belém, as pessoas perguntam por Noemi e ela diz: “Não me chamem de Noemi, mas de Mara” (amarga), pois o “Todo-Poderoso me tem afligido” (v.20, 21). Repare que Noemi não reclama de Deus, mas o chama de Todo-Poderoso, enfatizando a sua crença na soberania de Deus. Ela não está reclamando de sua situação diante das pessoas, mas enfatiza que Deus permitiu que ela assim estivesse. O que ela esqueceu é que Deus tem propósitos maiores na vida dos seus filhos.
Lembremos de José que teve sua vida virada de cabeça para baixo por causa da inveja de seus irmãos. Deus tinha planos maiores para a vida dele. Jó também foi provado mais do que qualquer um de nós, mas depois pôde dizer: “Antes eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora os meus olhos te vêem” (Jó 42.5). Lembremos também de nosso Senhor Jesus, mesmo sendo Deus suportou todo o sofrimento nesta terra porque tinha em vista o plano maior do Pai, a nossa salvação. Noemi sabia que era Deus agindo naquela situação, porém, sua amargura não a permitiu enxergar as coisas na perspectiva divina, entendendo que Deus tinha um plano maior em sua vida. Mal sabia ela o que o Senhor reservara para ela e Rute nos episódios seguintes. Mal sabia Rute o rumo que essa novela iria tomar graças ao seu gesto de misericórdia.
Conclusão
Algumas lições ficam claras nesse primeiro episódio. Primeiramente, Deus é soberano sobre tudo, e isto inclui o sofrimento. A fome e escassez, a viuvez e a morte dos filhos, o desamparo que afetou Noemi e suas noras estavam no plano de Deus. Da mesma maneira, momentos difíceis que passamos aqui estão em Seu plano eterno. Não sabemos os “por quês” e, creio, não precisamos saber. É preciso confiar em Sua soberania.
Talvez o seu problema esteja relacionado à falta de dinheiro ou de mantimentos; as coisas andam ruins em sua família; ao que parece, o Todo-Poderoso tem permitido você passar por um período amargo e você não entende porque isso está acontecendo em sua vida. Ainda assim, confie na soberania do Senhor pois Ele pode estar preparando algo maravilhoso para a sua vida.
Quando nos cercar o mal, se rugir o temporal,
Em Jesus vou confiar, Ele nunca vai falhar.
Quando a dor ou aflição vem turbar meu coração,
É preciso confiar e nunca duvidar.
Pois é perfeito o Seu caminho.
Nem sempre entenderei, porém, O seguirei.
Pois é perfeito, o Seu caminho.
Faze, ó Deus, de mim um vaso puro, sim.
Erros Deus não faz; Pois me dá paz.
(Hino 321, Voz de Melodia)
Em meio a tragédia, podemos confiar nos planos de Deus, pois Seu caminho é perfeito.
A segunda lição que quero deixar é que devemos ter um coração misericordioso e bondoso como o de Rute. Ela sabia que não teria nada de Noemi pois sua situação era miserável. Ainda assim Rute se apegou a ela e não quis deixá-la só, mesmo que isso custasse viver ambas na miséria como indigentes. Rute não quis deixar Noemi. Precisamos ter um coração como o de Rute.
Geralmente nos aproximamos das pessoas esperando que isso nos traga algum benefício ou que se adeque aos “meus interesses”. Fazemos o bem esperando ser recompensados. A parábola do Bom Samaritano ilustra bem o dever de fazer o bem de forma desinteressada, sem querer nada em troca. Isso é o que Deus requer de nós.
Em terceiro lugar, a história de Noemi e Rute nos ensina sobre o valor da amizade em dias ruins. Rute não desistiu de estar com Noemi e apoiá-la quando ela estava vivendo em amargura. “Em todo o tempo ama o amigo e na angústia se faz um irmão” (Pv 17.17). Precisamos ser amigáveis como Rute e apoiar aqueles que precisam de nós em momentos difíceis.
Em quarto e último lugar, esse primeiro episódio nos ensina que nunca saberemos o que um gesto de misericórdia pode proporcionar ao futuro. Rute não tinha ideia de que aquele gesto seu para com Noemi fizesse com que ela fosse contada na linhagem do Messias (4.17-22; Mt 1). Isso me lembra da história de Sir Nicholas Winton, um homem que - em total silêncio e sem alarde - organizou o resgate e passagens para a Grã-Bretanha de cerca de 669 crianças judias da Tchecoslováquia, em sua maioria destinados aos campos de extermínio nazistas antes da Segunda Guerra Mundial.
Sir Nicholas nunca contou a ninguém o que tinha feito até a sua mulher, numa ida ao sótão, vários anos depois, ter descoberto o que ele fez e publicado suas ações. Em 1998, num programa da BBC, foi organizado um encontro dele com algumas pessoas salvas por ele. Num dado momento, foi pedido que todos os salvos por ele se levantassem na plateia. Várias pessoas se levantaram. Nicholas Withon, com seu ato de misericórdia, preservou a vida de centenas de pessoas e proporcionou o crescimento e surgimento de várias famílias. Ele jamais imaginaria que seu ato de misericórdia proporcionasse a ele, no futuro, ver tantas famílias que ele ajudou a preservar.
Sejamos bondosos e misericordiosos como foi Rute. Um pequeno gesto aqui pode fazer uma grande diferença lá na frente. Confiemos no Senhor mesmo em dias ruins. O melhor está por vir. Amém!