segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Sola Gratia: O doce som da graça

11 Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens,  12  educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e piedosamente,  13  aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus,  14  o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tito 2:11-14)


Em torno de 1750, John Newton era o comandante de um navio negreiro inglês. Os navios fariam o primeiro percurso de sua viagem da Inglaterra, quase vazios, até que chegassem na costa africana. Lá os chefes tribais entregariam aos europeus as "cargas" compostas de homens e mulheres, capturados nas invasões e nas guerras entre as tribos. Os compradores selecionariam os espécimes mais finos, e os comprariam em troca de armas, munição, licor, e tecidos. Os cativos seriam trazidos, então, a bordo e preparados para o "transporte". Eram acorrentados abaixo das plataformas para impedir suicídios. Eram colocados de lado a lado, para conservar o espaço, em fileira após a fileira, uma após outra, até que a embarcação estivesse "carregada", normalmente com até 600 "unidades" de carga humana.

Os capitães procuravam fazer uma viagem rápida, esperando preservar ao máximo a sua carga; contudo, a taxa de mortalidade era alta, normalmente 20% ou mais. Quando um surto de disenteria ou qualquer outra doença ocorria, os doentes eram jogados ao mar. Uma vez que chegavam ao Novo Mundo, os negros eram negociados por açúcar e o melaço, para manufaturar o rum, que os navios carregariam à Inglaterra.

John Newton transportou muitas cargas de escravos africanos trazidos à América no século 18. Os escravos não podiam falar, gritar, esbravejar, então eles cantavam apenas com sons sem pronunciar palavra alguma, todos juntos, o ritmo de uma música.

No mar, em uma de suas viagens, o navio enfrentou uma enorme tempestade e afundou. Newton ofereceu sua vida à Cristo, achando que iria morrer. Após ter sobrevivido, ele se converteu e começou a estudar para ser pastor. Nos últimos 43 anos de sua vida ele pregou o evangelho em Olney e em Londres.

No túmulo de Newton, lê-se: "John Newton, uma vez um infiel e um libertino, um mercador de escravos na África, foi, pela misericórdia de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, perdoado e inspirado a pregar a mesma fé que ele tinha se esforçado muito por destruir."[1]

É isso que a graça do Senhor faz conosco: nos transforma por completo.

Até aqui falamos de três pilares importantes, ou heranças, da Reforma Protestante. Vimos que a Palavra de Deus é suficiente [sola scriptura], que Cristo é a nossa autoridade suprema [solus christus] e que somos justificados pela fé [sola fide]. Hoje falaremos da graça de Deus [sola gratia]. Assim, quero apresentar, a partir de Tt 2.11-14, três verdades acerca da graça de Deus.

Em primeiro lugar, a graça de Deus se manifesta na salvação  (v.11).

Graça é um favor que nos é concedido. É um ato de bondade, misericórdia ou uma bênção recebida. No NT a palavra graça aparece mais como uma dádiva de Deus em nosso favor. A graça é a livre disposição de Deus em favor do homem. É livre porque independe do que os homens possam lhe oferecer (se é que podem). Deus concede graça ao homem de maneira livre, visto que se trata de conceder algo que pertence a Ele. Aparece nas Escrituras como contrastando com a dívida (Rm 4.4 [Abraão], 16; com as obras (Rm 11.6) e com a lei (Jo 1.17).[2]

Aqui no verso 11 nos é dito que essa graça divina "se manifestou salvadora". Em que sentido se manifestou salvadora? A palavra manifestar indica uma aparição clara ou até mesmo visível. Deus manifesta a Sua graça a nós de diversas maneiras: em nossas famílias, em nossas amizades, no trabalho ou estudos, nos sustentando, na saúde, etc. Mas, a graça de Deus se tornou ainda mais clara a nós na salvação. A graça de Deus se tornou visível por meio da cruz de Cristo. A graça divina se manifestou salvadora.

O adjetivo salvadora, no grego, é usado aqui por Paulo para descrever a graça de Deus. É a graça que traz salvação. A graça de Deus que nos salva. A graça de Deus e manifestou trazendo salvação. Algo que é impossível ao homem, mas não para Deus (cf. Mt 19.25,26). É impossível aos homens por causa de sua condição (cf. 1:15).

Acontecimentos recentes nos fazem perceber a que ponto tem chegado a corrupção do homem. Em nome da “arte” coisas abomináveis têm sido apreciadas pelo homem moderno. Chegará um dia em que a pedofilia, por exemplo, não será considerado crime, como já acontece com outras abominações. De certa forma, não é algo que deve nos espantar pois o homem é corrupto em seu coração (Jr 17.9) e só a graça de Deus pode salvá-lo dele mesmo. A graça de Deus é suficiente para quebrantar o coração humano.

Quando o texto diz que a graça “se manifestou salvadora a todos os homens”, isso não significa que Paulo está ensinando o universalismo (que a graça de Deus irá salvar a todos os homens), mas que a salvação pela graça foi manifestada a todos sem distinção, sem acepção de pessoas. Não quer dizer todos sem exceção, indicando cada pessoa do mundo. Isto significa que Deus pode transformar qualquer tipo de pessoa pela sua maravilhosa graça.

Foi por essa graça que eu e você fomos salvos. Ninguém pense que fez por onde. De maneira nenhuma. Se não fosse Deus, com sua graça, ainda estaríamos perdidos sem Cristo e sem vida.

Em segundo lugar, a graça que se manifesta na salvação nos ensina a abandonar o mundanismo (vv. 12-13).

A palavra educar, utilizada aqui em nossa versão (ARA), indica instrução ou ensino (paideia). É daí que vem a palavra pedagogia.  A graça salvadora nos ensina a renegar ou abanonar a impiedade e paixões mundanas. Impiedade diz respeito a todo tipo de perversão e maldade. Ímpio é alguém que desafia e menospreza as leis de Deus. Judas relata que os ímpios andam segundo o seu desejo mau (ímpias paixões).

Por que os descrentes são chamados nas Escrituras de ímpios? Porque não respeitam a Deus nem suas leis e andam segundo suas paixões e desejos maus. São escravos de suas paixões (cf. Ef 2.3). Apenas a graça de Deus pode mudar o curso do ímpio. A graça de Deus também ensina o crente a se distanciar desse tipo de impiedade e das paixões mundanas (os desejos deste mundo caído, v. 12b).

A graça que se manifestou em nossa salvação nos ensina a abandonar o mundanismo e nos conduz a uma nova maneira de viver.

Primeiramente, Paulo declara que a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira sensata. Repare que isso é dito antes para alguns grupos da igreja em que Tito estava pastoreando, em Creta (1.5).  Ao falar sobre os deveres e qualificações dos ministros (presbíteros e bispos), nos é dito que uma das qualificações do pastor é ser sóbrio [sensato] (1.8). A orientação para os homens idosos é para que sejam sensatos (2.2). As mulheres idosas devem instruírem as jovens recém-casadas a serem sensatas (2.5). E agora Paulo diz que a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira sensata (v.12).

Agir com sensatez é viver de modo sóbrio, ter domínio próprio e governar todas as paixões e desejos, nos possibilitando ser conformados à mente de Cristo. A graça salvadora nos educa a reagir contra os nossos impulsos pecaminosos. O crente, alvo dessa graça, deve dominar seus impulsos e desejos do coração que vão contra à glória de Deus.

Perceba que aqui não vale aquela desculpa de que a carne é fraca. Temos que dominar os nossos desejos, pensamentos, impulsos, que nos levam a tropeçar. Tiago nos mostra em sua epístola que cada um é tentado de acordo com sua própria cobiça, quando esta atrai e seduz (Tg 1.14). Corresponder a esse desejo nos leva ao pecado (v.15). O diabo nos tenta em nossas fragilidades. Quais são seus desejos e impulsos pecaminosos mais intensos? Cuidado! A graça nos leva a vivermos de modo sensato.

Em segundo lugar, a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira justa. Viver de maneira justa é viver de acordo com aquilo que é reto. É viver de acordo com a justiça de Deus. O contrário disso é viver de maneira injusta, fora dos padrões de retidão de Deus. Nós não somos mais injustos (3.3). Ao sermos alcançados pela graça, na benignidade (3.4) e misericórdia divinas (3.5), fomos regenerados pelo Espírito para sermos declarados justos (3.7). Nossa justificação pela graça deve nos levar a sermos justos.

Em terceiro lugar, a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira piedosa. Viver de maneira piedosa é o contrário de viver segundo a impiedade (v.12b). É respeitar as leis de Deus e agir de maneira devota a Ele; viver em santidade. Vivemos de maneira piedosa quando praticamos as disciplinas espirituais: leitura da Palavra, oração, adoração, serviço, etc.

Ser cristão envolve devoção. Insisto. Ninguém é salvo porque diz que é salvo. Um cristão vive piedosamente em Cristo Jesus. Ao olharmos para o que Cristo fez por nós na cruz, o favor de Deus ao nos salvar, devemos ser impelidos à viver piedosamente.

Em quarto lugar, a graça de Deus nos ensina a vivermos na expectativa da volta de Cristo. A graça salvadora nos educa a vivermos numa esperança escatológica: a volta de Cristo. O futuro escatológico, especialmente relacionada a vinda do Senhor, deve moldar nosso estilo de vida no presente.

A graça salvadora nos leva a termos esperança na manifestação da glória. Glória de quem? “Do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus”. Essa construção gramatical (no grego) indica que está se referindo a uma única pessoa (cf. Ef 1.3 [“o Deus e Pai”, referindo-se à primeira Pessoa da Trindade). Essa construção em Tt 3.13 deixa explícita a deidade de Cristo, como em 2Pd 1.1. Nós aguardamos Cristo, o Deus que se fez carne. Assim como sua glória foi vista neste mundo (Jo 1.14), será vista novamente em sua segunda vinda. Isso deve moldar nossa vida no presente. Essa esperança deve nos trazer conforto e edificação (1Ts 4.18; 5.11), vigilância (1Ts 5.6) e esperança (1Ts 5.8,9).

A graça de Deus se manifestou salvadora, mas também educadora, pois nos ensina a abandonar o mundanismo e a vivermos neste mundo de maneira sensata, justa, piedosa e na expectativa da volta de Cristo.

A terceira e última verdade acerca da graça de Deus é que esta graça que salva e ensina nos purifica de todo pecado (v. 14). A graça de Deus nos redime e purifica do pecado.

O texto declara, de modo claro, que Cristo se deu por nós para nos remir. A palavra remissão diz respeito ao preço do resgate que foi pago por Cristo. Éramos escravos do pecado, mas Cristo nos comprou com seu sangue. A graça de Deus nos purifica de todo pecado e nos resgata do pecado.

A graça de Deus nos purifica de todo pecado para sermos Dele. Não pertencemos a nós mesmos, mas pertencemos a Ele. Ele nos comprou para sermos dele. Nós não temos vontade própria, somos de Deus. Fomos remidos para sermos Dele.

Ainda, a graça de Deus nos purifica de todo pecado para sermos operosos. Nossas obras indicam quem somos. Se não somos de Deus, nossas obras “deduram” isso (1.16). Não fomos salvos pelas obras, mas para as obras (3.8,14). A graça que nos purifica do pecado nos capacita para as obras, para servir ao Senhor.

Você não pode se contentar em apenas ser salvo do inferno. Você deve ser operoso, zeloso de boas obras. Infelizmente, a realidade de muitos crentes é o descompromisso com o trabalho do Senhor. Percebe-se isso quando pedimos que dê o nome aqueles que gostariam de ajudar em algum ministério específico na igreja. Alguns nem cogitam, nem pensam na possibilidade de servir. Lamentável. Deus não te chamou para ficar ouvindo pregação, para ouvir musica na igreja, para sentar no banco da igreja vendo os outros trabalhando. Você foi chamado para servir.

A graça do Senhor é suficiente para nos conduzir a salvação, para nos ajudar a perseverar lutando contra o mundanismo e para nos purificar do pecado a fim de servirmos a Deus. É tudo pela graça de Deus.

Lembra de John Newton? Um traficante de escravos que foi alvo da graça de Deus e passou a servir a Deus? Um mês antes de morrer ele disse as seguintes palavras:

“É extraordinário morrer; e, quando a carne e o coração enfraquecem, ter Deus como a força de nosso coração e nossa porção para sempre. Sei em quem tenho crido, e Ele é capaz de manter aquilo com que me comprometi naquele grande dia. De agora em diante, está reservada para mim uma coroa de justiça, a qual o Senhor, reto Juiz, me dará naquele dia”.[3]

Lembra da musica que era entoada [solfejada] pelos escravos, quando não podia falar? Depois de convertido, John Newton escreveu um hino utilizando aquela melodia. O nome da música é Amazing Grace (sublime graça). Ela diz assim:

Sublime graça! Como é doce o som,
Que salvou um miserável como eu!
Uma vez eu estava perdido, mas agora fui encontrado,
Estava cego, mas agora eu vejo.

Foi a graça que ensinou meu coração a temer,
E a graça aliviou meus medos;
Como preciosa essa graça apareceu,
A hora em que eu acreditei!

Através de muitos perigos, labutas e armadilhas,
Eu cheguei;
É a graça que me trouxe em segurança até o momento,
E graça vai me levar para casa.

O Senhor prometeu bom para mim,
Sua palavra assegura a minha esperança;
Ele será meu escudo e porção será,
Enquanto a vida dura.

Sim, quando esta carne e coração se falhar,
E a vida mortal, cessará,
Eu devo possuir, dentro do véu,
Uma vida de alegria e paz.

A terra em breve se dissolverão como a neve,
O sol deixar de brilhar;
Mas Deus, que me chamou aqui em baixo,
Será para sempre meu.

John Newton, Olney Hymns (London: W. Oliver, 1779)

A graça do Senhor é suficiente para nos salvar, nos manter salvos e nos levar para o nosso Lar. Amém!




[1] Wikipedia.
[2] Vine NT.
[3] John Piper, Raízes da perseverança, p.46-47.

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