“11
Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, 12 educando-nos para que, renegadas a impiedade
e as paixões mundanas, vivamos, no presente século, sensata, justa e
piedosamente, 13 aguardando a bendita
esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo
Jesus, 14 o qual a si mesmo se deu
por nós, a fim de remir-nos de toda iniqüidade e purificar, para si mesmo, um
povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tito
2:11-14)
Em torno de
1750, John Newton era o comandante de um navio negreiro inglês. Os navios
fariam o primeiro percurso de sua viagem da Inglaterra, quase vazios, até que
chegassem na costa africana. Lá os chefes tribais entregariam aos europeus as
"cargas" compostas de homens e mulheres, capturados nas invasões e
nas guerras entre as tribos. Os compradores selecionariam os espécimes mais
finos, e os comprariam em troca de armas, munição, licor, e tecidos. Os cativos
seriam trazidos, então, a bordo e preparados para o "transporte".
Eram acorrentados abaixo das plataformas para impedir suicídios. Eram colocados
de lado a lado, para conservar o espaço, em fileira após a fileira, uma após outra,
até que a embarcação estivesse "carregada", normalmente com até 600
"unidades" de carga humana.
Os capitães
procuravam fazer uma viagem rápida, esperando preservar ao máximo a sua carga;
contudo, a taxa de mortalidade era alta, normalmente 20% ou mais. Quando um
surto de disenteria ou qualquer outra doença ocorria, os doentes eram jogados
ao mar. Uma vez que chegavam ao Novo Mundo, os negros eram negociados por
açúcar e o melaço, para manufaturar o rum, que os navios carregariam à
Inglaterra.
John Newton
transportou muitas cargas de escravos africanos trazidos à América no século
18. Os escravos não podiam falar, gritar, esbravejar, então eles cantavam
apenas com sons sem pronunciar palavra alguma, todos juntos, o ritmo de uma
música.
No mar, em uma de
suas viagens, o navio enfrentou uma enorme tempestade e afundou. Newton
ofereceu sua vida à Cristo, achando que iria morrer. Após ter sobrevivido, ele
se converteu e começou a estudar para ser pastor. Nos últimos 43 anos de sua
vida ele pregou o evangelho em Olney e em Londres.
No túmulo de
Newton, lê-se: "John Newton, uma vez um infiel e um libertino, um mercador
de escravos na África, foi, pela misericórdia de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo, perdoado e inspirado a pregar a mesma fé que ele tinha se esforçado
muito por destruir."[1]
É isso que a graça do Senhor faz
conosco: nos transforma por completo.
Até aqui falamos
de três pilares importantes, ou heranças, da Reforma Protestante. Vimos que a
Palavra de Deus é suficiente [sola scriptura], que Cristo é a nossa autoridade
suprema [solus christus] e que somos justificados pela fé [sola fide]. Hoje
falaremos da graça de Deus [sola gratia]. Assim, quero apresentar, a partir de Tt 2.11-14, três verdades acerca da
graça de Deus.
Em primeiro lugar, a graça de Deus se manifesta na salvação
(v.11).
Graça é um favor
que nos é concedido. É um ato de bondade, misericórdia ou uma bênção recebida.
No NT a palavra graça aparece mais como uma dádiva de Deus em nosso favor. A
graça é a livre disposição de Deus em favor do homem. É livre porque independe
do que os homens possam lhe oferecer (se é que podem). Deus concede graça ao
homem de maneira livre, visto que se trata de conceder algo que pertence a Ele.
Aparece nas Escrituras como contrastando com a dívida (Rm 4.4 [Abraão], 16; com
as obras (Rm 11.6) e com a lei (Jo 1.17).[2]
Aqui no verso 11
nos é dito que essa graça divina "se manifestou salvadora". Em que
sentido se manifestou salvadora? A palavra manifestar indica uma aparição clara
ou até mesmo visível. Deus manifesta a Sua graça a nós de diversas maneiras: em
nossas famílias, em nossas amizades, no trabalho ou estudos, nos sustentando,
na saúde, etc. Mas, a graça de Deus se tornou ainda mais clara a nós na
salvação. A graça de Deus se tornou visível por meio da cruz de Cristo. A graça
divina se manifestou salvadora.
O adjetivo
salvadora, no grego, é usado aqui por Paulo para descrever a graça de Deus. É a
graça que traz salvação. A graça de Deus que nos salva. A graça de Deus e
manifestou trazendo salvação. Algo que é impossível ao homem, mas não para Deus
(cf. Mt 19.25,26). É impossível aos homens por causa de sua condição (cf.
1:15).
Acontecimentos
recentes nos fazem perceber a que ponto tem chegado a corrupção do homem. Em
nome da “arte” coisas abomináveis têm sido apreciadas pelo homem moderno.
Chegará um dia em que a pedofilia, por exemplo, não será considerado crime,
como já acontece com outras abominações. De certa forma, não é algo que deve
nos espantar pois o homem é corrupto em seu coração (Jr 17.9) e só a graça de
Deus pode salvá-lo dele mesmo. A graça de Deus é suficiente para quebrantar o
coração humano.
Quando o texto
diz que a graça “se manifestou salvadora a todos os homens”, isso não significa
que Paulo está ensinando o universalismo (que a graça de Deus irá salvar a
todos os homens), mas que a salvação pela graça foi manifestada a todos sem
distinção, sem acepção de pessoas. Não quer dizer todos sem exceção, indicando
cada pessoa do mundo. Isto significa que Deus pode transformar qualquer tipo de
pessoa pela sua maravilhosa graça.
Foi por essa
graça que eu e você fomos salvos. Ninguém pense que fez por onde. De maneira
nenhuma. Se não fosse Deus, com sua graça, ainda estaríamos perdidos sem Cristo
e sem vida.
Em segundo
lugar, a graça que se manifesta na salvação nos ensina a abandonar o mundanismo (vv. 12-13).
A palavra
educar, utilizada aqui em nossa versão (ARA), indica instrução ou ensino
(paideia). É daí que vem a palavra pedagogia.
A graça salvadora nos ensina a renegar ou abanonar a impiedade e paixões
mundanas. Impiedade diz respeito a todo tipo de perversão e maldade. Ímpio é
alguém que desafia e menospreza as leis de Deus. Judas relata que os ímpios
andam segundo o seu desejo mau (ímpias paixões).
Por que os
descrentes são chamados nas Escrituras de ímpios? Porque não respeitam a Deus
nem suas leis e andam segundo suas paixões e desejos maus. São escravos de suas
paixões (cf. Ef 2.3). Apenas a graça de Deus pode mudar o curso do ímpio. A
graça de Deus também ensina o crente a se distanciar desse tipo de impiedade e
das paixões mundanas (os desejos deste mundo caído, v. 12b).
A graça que se
manifestou em nossa salvação nos ensina a abandonar o mundanismo e nos conduz a
uma nova maneira de viver.
Primeiramente,
Paulo declara que a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira sensata. Repare que isso é dito antes
para alguns grupos da igreja em que Tito estava pastoreando, em Creta (1.5). Ao falar sobre os deveres e qualificações dos
ministros (presbíteros e bispos), nos é dito que uma das qualificações do
pastor é ser sóbrio [sensato] (1.8). A orientação para os homens idosos é para
que sejam sensatos (2.2). As mulheres idosas devem instruírem as jovens
recém-casadas a serem sensatas (2.5). E agora Paulo diz que a graça de Deus nos
ensina a vivermos de maneira sensata (v.12).
Agir com
sensatez é viver de modo sóbrio, ter domínio próprio e governar todas as
paixões e desejos, nos possibilitando ser conformados à mente de Cristo. A
graça salvadora nos educa a reagir contra os nossos impulsos pecaminosos. O
crente, alvo dessa graça, deve dominar seus impulsos e desejos do coração que
vão contra à glória de Deus.
Perceba que aqui
não vale aquela desculpa de que a carne é fraca. Temos que dominar os nossos
desejos, pensamentos, impulsos, que nos levam a tropeçar. Tiago nos mostra em
sua epístola que cada um é tentado de acordo com sua própria cobiça, quando
esta atrai e seduz (Tg 1.14). Corresponder a esse desejo nos leva ao pecado
(v.15). O diabo nos tenta em nossas fragilidades. Quais são seus desejos e
impulsos pecaminosos mais intensos? Cuidado! A graça nos leva a vivermos de
modo sensato.
Em segundo
lugar, a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira justa. Viver de maneira justa é viver de acordo com aquilo que é
reto. É viver de acordo com a justiça de Deus. O contrário disso é viver de
maneira injusta, fora dos padrões de retidão de Deus. Nós não somos mais
injustos (3.3). Ao sermos alcançados pela graça, na benignidade (3.4) e
misericórdia divinas (3.5), fomos regenerados pelo Espírito para sermos
declarados justos (3.7). Nossa justificação pela graça deve nos levar a sermos
justos.
Em terceiro
lugar, a graça de Deus nos ensina a vivermos de maneira piedosa. Viver de maneira piedosa é o contrário de viver segundo a
impiedade (v.12b). É respeitar as leis de Deus e agir de maneira devota a Ele;
viver em santidade. Vivemos de maneira piedosa quando praticamos as disciplinas
espirituais: leitura da Palavra, oração, adoração, serviço, etc.
Ser cristão
envolve devoção. Insisto. Ninguém é salvo porque diz que é salvo. Um cristão
vive piedosamente em Cristo Jesus. Ao olharmos para o que Cristo fez por nós na
cruz, o favor de Deus ao nos salvar, devemos ser impelidos à viver
piedosamente.
Em quarto lugar,
a graça de Deus nos ensina a vivermos na
expectativa da volta de Cristo. A graça salvadora nos educa a vivermos numa
esperança escatológica: a volta de Cristo. O futuro escatológico, especialmente
relacionada a vinda do Senhor, deve moldar nosso estilo de vida no presente.
A graça salvadora
nos leva a termos esperança na manifestação da glória. Glória de quem? “Do
nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus”. Essa construção gramatical (no
grego) indica que está se referindo a uma única pessoa (cf. Ef 1.3 [“o Deus e
Pai”, referindo-se à primeira Pessoa da Trindade). Essa construção em Tt 3.13
deixa explícita a deidade de Cristo, como em 2Pd 1.1. Nós aguardamos Cristo, o
Deus que se fez carne. Assim como sua glória foi vista neste mundo (Jo 1.14),
será vista novamente em sua segunda vinda. Isso deve moldar nossa vida no
presente. Essa esperança deve nos trazer conforto e edificação (1Ts 4.18;
5.11), vigilância (1Ts 5.6) e esperança (1Ts 5.8,9).
A graça de Deus
se manifestou salvadora, mas também educadora, pois nos ensina a abandonar o mundanismo
e a vivermos neste mundo de maneira sensata, justa, piedosa e na expectativa da
volta de Cristo.
A terceira e
última verdade acerca da graça de Deus é que esta graça que salva e ensina nos purifica de todo pecado (v. 14). A
graça de Deus nos redime e purifica do pecado.
O texto declara,
de modo claro, que Cristo se deu por nós para nos remir. A palavra remissão diz
respeito ao preço do resgate que foi pago por Cristo. Éramos escravos do
pecado, mas Cristo nos comprou com seu sangue. A graça de Deus nos purifica de
todo pecado e nos resgata do pecado.
A graça de Deus
nos purifica de todo pecado para sermos
Dele. Não pertencemos a nós mesmos, mas pertencemos a Ele. Ele nos comprou
para sermos dele. Nós não temos vontade própria, somos de Deus. Fomos remidos
para sermos Dele.
Ainda, a graça
de Deus nos purifica de todo pecado para sermos
operosos. Nossas obras indicam quem somos. Se não somos de Deus, nossas
obras “deduram” isso (1.16). Não fomos salvos pelas obras, mas para as
obras (3.8,14). A graça que nos purifica do pecado nos capacita para as obras,
para servir ao Senhor.
Você não pode se
contentar em apenas ser salvo do inferno. Você deve ser operoso, zeloso de boas
obras. Infelizmente, a realidade de muitos crentes é o descompromisso com o
trabalho do Senhor. Percebe-se isso quando pedimos que dê o nome aqueles que
gostariam de ajudar em algum ministério específico na igreja. Alguns nem
cogitam, nem pensam na possibilidade de servir. Lamentável. Deus não te chamou
para ficar ouvindo pregação, para ouvir musica na igreja, para sentar no banco
da igreja vendo os outros trabalhando. Você foi chamado para servir.
A graça do
Senhor é suficiente para nos conduzir a salvação, para nos ajudar a perseverar
lutando contra o mundanismo e para nos purificar do pecado a fim de servirmos a
Deus. É tudo pela graça de Deus.
Lembra de John
Newton? Um traficante de escravos que foi alvo da graça de Deus e passou a
servir a Deus? Um mês antes de morrer ele disse as seguintes palavras:
“É extraordinário morrer; e, quando a carne e o coração enfraquecem, ter
Deus como a força de nosso coração e nossa porção para sempre. Sei em quem
tenho crido, e Ele é capaz de manter aquilo com que me comprometi naquele
grande dia. De agora em diante, está reservada para mim uma coroa de justiça, a
qual o Senhor, reto Juiz, me dará naquele dia”.[3]
Lembra da musica
que era entoada [solfejada] pelos escravos, quando não podia falar? Depois de convertido, John Newton escreveu um hino utilizando aquela
melodia. O nome da música é Amazing Grace
(sublime graça). Ela diz assim:
Sublime graça!
Como é doce o som,
Que salvou um
miserável como eu!
Uma vez eu estava
perdido, mas agora fui encontrado,
Estava cego, mas
agora eu vejo.
Foi a graça que
ensinou meu coração a temer,
E a graça aliviou
meus medos;
Como preciosa essa
graça apareceu,
A hora em que eu
acreditei!
Através de muitos
perigos, labutas e armadilhas,
Eu cheguei;
É a graça que me
trouxe em segurança até o momento,
E graça vai me
levar para casa.
O Senhor prometeu
bom para mim,
Sua palavra
assegura a minha esperança;
Ele será meu
escudo e porção será,
Enquanto a vida
dura.
Sim, quando esta
carne e coração se falhar,
E a vida mortal,
cessará,
Eu devo possuir,
dentro do véu,
Uma vida de
alegria e paz.
A terra em breve
se dissolverão como a neve,
O sol deixar de
brilhar;
Mas Deus, que me
chamou aqui em baixo,
Será para sempre
meu.
John Newton, Olney
Hymns (London: W. Oliver, 1779)
A graça do Senhor é suficiente para nos salvar, nos
manter salvos e nos levar para o nosso Lar. Amém!

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